22 de abril de 2012

Marx e os cacauais



Sul da Bahia. Década de 1930. O período áureo das plantações de cacau. Mas áureo para quem?

Pertencente à fase mais marxista de Jorge Amado, Cacau descreve a vida dos trabalhadores rurais, explorados ao extremo nas fazendas próximas a Ilhéus. Com uma denúncia social bastante contundente, o romance se presta à propaganda do ideal socialista.

Suas personagens podem ser divididas em três grandes blocos:
O primeiro deles, o dos coronéis, que, apesar de sua brutalidade extrema, prestam um assistencialismo paternalista bastante hipócrita ao batizar os filhos dos empregados, ao descrever - como faz a filha do coronel - de maneira irreal a "feliz" vida que os trabalhadores rurais levam nas fazendas.

O segundo bloco pode ser sintetizado pelo capataz Algemiro. Essa personagem exemplifica os pobres, "alugados", no vocabulário do romance, que se tornaram sedentos por poder e dinheiro. São exatamente aqueles que olvidam suas origens humildes e ignoram qualquer possibilidade de consciência de classe. Esse é um papel diametralmente oposto ao do narrador, que, de menino rico e educado em Sergipe, torna-se pobre e "alugado" em Ilhéus. 

O terceiro e mais complexo bloco, o dos trabalhadores, é, também o mais heterogêneo. É composto por grupos mais ou menos conscientes de seu papel social: o próprio narrador e Colodino (que consegue ferir o mimado filho do todo-poderoso coronel, depois que o "coronézinho" seduz sua namorada, Magnólia). Além deles, nessa classe há personagens como Honório e João Grilo, que devido à ausência de escolaridade são os típicos trabalhadores mais flagrantemente explorados, atribuindo suas condições a deus ou à natureza, como se se tratasse de uma situação fatalista.

Ao final do romance, o narrador acaba caindo no gosto da filha do coronel, Mária. No entanto, a condição para que o amor se concretizasse seria que Mária, de seu posto de filha do homem mais rico do sul da Bahia, se tornasse a mulher de um "alugado" das fazendas de cacau. Por estarmos falando do mundo real - e não dos mundos irreais dos romances burgueses, a proposta é recusada.

A consciência política de nosso narrador se sobrepõe a qualquer sentimentalismo burguês e romântico. Nas palavras do próprio narrador, seu amor por seus camaradas de classe é muito maior do que qualquer sentimento que ele pudesse sentir pela filha do coronel.

AMADO, Jorge. Cacau. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

8 de abril de 2012

Liberdade incondicional


Um funcionário público, metódico, burocrático e respeitável deixa sua vida infeliz e fingida em busca da liberdade que somente as ruas da "boca do lixo" de Salvador poderiam lhe dar. Essa libertação se dá de maneira violenta, explicitando tudo aquilo que Joaquim Soares da Cunha deixara de dizer em favor de uma vida sossegada, segura e pacata. Sai aos gritos, chamando a mulher e a filha de "jararacas", abandona seu emprego e enfia-se nas casas e nos botecos da ladeira do Tabuão.

Lá, Joaquim Soares da Cunha passa a ser conhecido como Quincas Berro Dágua, o vagabundo mais conhecido de toda Salvador. A família, humilhada, prefere supor que o "pai de família" morrera, e com toda a honra que lhe era devida antes.

Acontece que o velho morre e a família vai acudir os compromissos do velório e do enterro. Surge o primeiro impasse: onde velá-lo? Em casa? E ter de suportar os comentários maldosos dos vizinhos e conhecidos? Não. Seu velório é feito no mesmo quarto imundo onde vivera nos últimos anos.

Aí o trecho mais interessante de todo o livro: a filha, Vanda, e o pai morto restam sozinhos no pequeno quarto infecto. A filha se sente triunfante, afinal vencera o duelo entre a vida regrada e a vida libertina. Agora seu pai não poderia mais importunar os bons costumes da família. Porém, o defunto sorria. O sorriso do defunto era uma afronta a sua conquista. O mesmo capítulo mostra a aparente vitória da filha e o triunfo (de fato) do defunto, que vencera e que humilhara a família até mesmo morto.

Ao seu velório, vêm os amigos de vadiagem. O segundo problema para a família que procurava manter a respeitabilidade de uma família pequeno-burguesa e católica. Ferida em seu orgulho, a família de sangue deve suportar a verdadeira família de Quincas, a ralé da cidade baixa, que fica a cargo dos cuidados do corpo. Acontece que Quincas, de maneira bastante fantástica, ressuscita e sai pela derradeira vez com seus parceiros da rua.

Depois de estar livre das roupas "respeitáveis" com que a funerária o pusera no velório, Quincas reencontra Quitéria, sua amante, e todos seus colegas de farra. Morre finalmente, jogando-se ao mar, como pretendera desde o início. Assim não estaria preso a um caixão, enfiado sob a terra, mas teria a possibilidade de viajar por todos os lugares por onde não andara ainda.

O livro remete à velha disputa entre a liberdade (perigosa e arriscável, mas exultante e lasciva) e as regras (intoleráveis e burocráticas, mas seguras e peremptórias). Jorge Amado, definitivamente, dá vitória à liberdade!!!

AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

21 de fevereiro de 2012

Felicidade(s)

Não pude me furtar a escrever novamente acerca de mais um conto contido na “Nova Antologia do Conto Russo”, do professor Bruno Barretto Gomide. Trata-se, agora, do fantástico (considere a ambiguidade da palavra) conto de Vladímir Odóievski.

O texto, que utiliza o recurso das epístolas e da fala do próprio editor, constrói-se sobre uma verossimilhança formidável. Trata de um homem que, tendo herdado de seu tio uma propriedade rural, muda-se para o campo. À primeira impressão, de que a vida simples, rural, sem preocupação era um bom reinício, sobrepõe-se sua segunda impressão: de que as pessoas do campo, exatamente por não terem as vaidades dos urbanos são mais puramente mesquinhas, ambiciosas, imorais e insensatas.

Em decorrência disso, Platon Mikhaílovitch (esse nome será de extrema importância no decorrer da narrativa) mergulha-se na leitura da biblioteca secreta de seu tio, que continha livros sobre esoterismo e alquimia. Suas experiências o levam a um mundo paralelo e o isolam de sua vida social, especialmente do casamento que arranjara com a filha de um rico fazendeiro, vizinho de sua propriedade.

Seu isolamento leva o destinatário de suas cartas a suas terras, a fim de averiguar o isolamento do amigo. Acompanhado de um médico, encontram-no deitado, em estado de semiconsciência, e passam a medicá-lo e a provocar-lhe os sentidos. Depois de parcialmente restabelecido, o amigo rearranja seu casamento e parte.

Algum tempo depois, o amigo volta à casa de Mikhaílovitch e encontra seu amigo bem casado, com os rendimentos regulares e a propriedade bastante produtiva. Ao ser perguntado se é feliz, Mikhaílovitch responde que é feliz segundo os padrões estabelecidos pela sociedade e por esse mundo, mas que fora muito mais feliz quando tinha toda a verdade revelada diante de seus olhos, a partir dos estudos a que se dedicara. Assim como no mito da caverna, de Platão, a felicidade pode se consumar em vários níveis de profundidade, mas somente em um deles ela é verdadeira.

Todo o conto gira em torno de uma estrutura cíclica, magnificamente construída. No início do conto, quando ainda estava deslumbrado com a simplicidade do campo, Mikhaílovitch afirmou que “a verdadeira felicidade pode consistir apenas em saber tudo ou não saber nada, e, uma vez que a primeira coisa é por ora impossível ao homem, ele deve escolher a segunda”.

Com a decepção diante dos homens do campo, nossa personagem passa a buscar o conhecimento, a partir da leitura e, paradoxalmente, atinge o mais simples dos conhecimentos: a verdade, que, segundo ele, nos é revelada de maneira evidente, mas que nos recusamos a ver.
Ao final, quando apresenta a seu amigo a tese de que sua felicidade terrena é parcial, constrói a seguinte analogia:

Vocês, senhores sensatos, são semelhantes ao marceneiro a quem ordenaram fazer uma caixa para conter caros instrumentos de física: ele tomou incorretamente as medidas, os instrumentos não cabiam nela; o que fazer? Mas a caixa estava pronta e bem envernizada. O artesão torneou os instrumentos; entortou aqui, endireitou acolá; eles couberam na caixa, assentaram-se perfeitamente, dava até gosto de olhar. Só havia uma coisa errada: os instrumentos estavam danificados. Senhores! Os instrumentos não são para a caixa; a caixa é para os instrumentos! Façam a caixa de acordo com os instrumentos, não os instrumentos de acordo com a caixa.

Depois disso, Mikhaílovitch tornou-se um rico fazendeiro, bem casado, capitalista, dono de terra, ignorante — e feliz!

Leandro S. Megna

ODÓIEVSKI, Vladímir. A sílfide. In: Nova Antologia do Conto Russo. Tradução de Lucas Simone. Organização de Bruno Barretto Gomide. São Paulo: Editora 34, 2011.

20 de fevereiro de 2012

Dois quadros da Rússia

Essa postagem tratará de dois textos contidos numa coletânea sobre contos russos, a mais nova delas, chamada "Nova Antologia do Conto Russo", organizada pelo professor Bruno Barretto Gomide. Trata-se dos dois primeiros contos da coletânea, organizada em ordem cronológica, desde 1792 a 1998.

Propus-me a ler os contos obedecendo à ordem sugerida, ainda que em seu prefácio o autor evidencie as várias possibilidades de leitura de sua coletânea.

O primeiro dos contos - e mais antigo - foi escrito por Nikolai Karamzin, autor desconhecido no Brasil e que sinaliza, pela fluidez de seu texto, apesar de sua profundidade, um excelente início na tradição dos contos russos.

O conto escolhido nessa coletânea, e único em meu repertório no que tange a esse autor, chama-se Pobre Liza. Seria apenas mais uma história de amor não correspondido não fossem dois fatores: a já mencionada fluidez do texto que, não obstante a temática romântica, não chega nem perto de ser piegas; e o pano de fundo, a Rússia do início do século XIX, que sob o governo czarista propõe análises sociológicas muito profundas e interessantes.

Gostaria de me concentrar no segundo fator, já que a fluidez do texto pode ser bem pouco discutida por mim, dada a minha total ignorância no idioma russo e posto que a fluidez pode ser atribuída também à primorosa tradução feita por Natalia Marcelli de Carvalho e Fátima Bianchi.

Liza é uma pobre camponesa que, após a morte dos pais, vive com a mãe em uma situação de grande insegurança na manutenção de seus meios de subsistência. Liza passa a vender as flores que cultiva em Moscou, deixando sua mãe preocupada devido à viagem. Lá, Liza encontra Erast, um nobre que se propõe a comprar todo o fornecimento de flores que Liza traz. Passam a se relacionar secretamente, porém, à consumação desse relacionamento põe-se um grande obstáculo: as diferenças sociais. Aí entra o grande imbroglio da narrativa e os mais interessantes pontos da análise de uma Rússia que ainda distinguia setores sociais de forma patente.

Essa impossibilidade culmina com o suicídio de Liza ao descobrir que, por razões pecuniárias, Erast se comprometera a outra mulher.

É um conto que pode muito bem ser enquadrado no rol do grande Romantismo europeu, contando ainda com o sabor das grandes narrativas russas que estariam por vir.

O segundo conto, Viagem a Arzrum, pertence a um autor mais conhecido dos brasileiros, Aleksandr Púchkin. Conhecido como um dos grandes russos (Tchékov, Gógol, Dostoiévski, etc.), Púchkin recebeu na coletânea organizada por Gomide um conto que, pelo menos a mim, figurava como desconhecido.

Esse conto, escrito em 1835, narra com detalhes descritivos impressionantes (e nem um pouco descartáveis, como costumam ser considerados esses detalhes quando se leem textos mais longos), a viagem do poeta à cidade de Arzrum, na região do Cáucaso. Trata-se, em verdade, de um misto de memória e ficção em que se descreve a jornada do poeta pela Rússia, pela Geórgia, pela Armênia e pela Turquia, no ano de 1829, a fim de encontrar-se com o exército russo. Os nomes dos vários generais, paxás e chefes locais devem, em uma leitura mais detalhada, ser de bastante interesse. Porém, em prol de uma fluidez maior do texto, preferi tratá-los como meras personagens internas à narrativa, desprezando seu valor histórico, que deve ter sido fundamental para um leitor da época.

O que realmente interessou na leitura de "Viagem a Arzrum" foi a descrição detalhada de paisagens, cidades, pessoas e culturas muito diversas da nossa. A estadia do autor em Tiflis (ou Tbilisi), capital da Geórgia, é recheada de episódios de enriquecimento cultural impressionante, como a descrição dos banhos públicos, das fisionomias das belas mulheres georgianas, da música e das praças da cidade. Sua travessia para a Armênia configurou-se uma alteração de toda a paisagem, menos tórrida, mais rude. A brutalidade turca também é descrita em detalhes.

Ambos os contos valem a leitura por contituírem quadros de um momento e de um lugar muito distantes do nosso. A Rússia particularmente tem despertado em mim um interesse muito intenso, porque a imensidão não concerne apenas a seus territórios, mas (e especialmente) à sua riqueza cultural.

KARAMZIN, Nikolai. Pobre Liza. In: Nova Antologia do Conto Russo. Tradução de Natalia Marcelli de Carvalho e Fátima Bianchi. Organização de Bruno Barretto Gomide. São Paulo: Editora 34, 2011.

PÚCHKIN, Aleksandr. Viagem a Arzrum. In: Nova Antologia do Conto Russo. Tradução de Cecília Rosas. Organização de Bruno Barretto Gomide. São Paulo: Editora 34, 2011.

19 de fevereiro de 2012

As hipocrisias da morte


“Depois que um homem aprende a pensar, pensa sempre na própria morte, pouco importa em que esteja pensando. Todos os filósofos fizeram assim. E que verdade pode haver uma vez que existe a morte?”

Essa afirmação, feita por Tolstói a Górki sintetiza bem o seu interesse, quase (ou totalmente) obsessivo, por esse tema, tão recorrente em sua obra. E, de fato, a morte é um dos temas mais caros à literatura universal e é explorada em seus mais diversos matizes na obra do russo Lev Tolstói (1828-1910).

A novela A morte de Ivan Ilitch é uma daqueles livros que, como afirma Paulo Rónai, torna-se inesquecível na vida daquele que lê, porque, apesar de se passar numa Rússia do século XIX, tempo e lugar muito distantes para nós, brasileiros do século XXI, tange o tema mais universal que se pode conceber: a morte.

Exemplo maior da humanização da arte, em detrimento dos grandes conceitos platônicos sobre os quais repousava a arte pré-burguesa, essa novela toca na morte como condição inerente ao homem, conceito rés do chão, muito distante da Morte, com letra maiúscula, dos grandes classicistas. Essa que é tema de discussões, mas que se reconfigura completamente quando se nos apresenta pessoalmente, porque admitimos que temos certa profundidade.

“O exemplo do silogismo que ele aprendera na Lógica de Kiesewetter: Caio é um homem, os homens são mortais, logo Caio é mortal, parecera-lhe, durante toda a vida, correto somente em relação a Caio, mas de modo algum em relação a ele. Tratava-se de Caio-homem, um homem em geral, e neste caso era absolutamente justo; mas ele não era Caio, não era um homem em geral (...). Existiu porventura para Caio aquele cheiro da pequena bola de couro listada, de que ele gostara tanto?! Porventura Caio beijava daquela maneira a mão da mãe, acaso farfalhou para ele daquela maneira, a seda das dobras do vestido da mãe? (...) Estivera Caio apaixonado? E era capaz de conduzir assim uma sessão de tribunal?”

Ivan Ilitch é um juiz que, após uma queda acidental, começa a padecer todos os estágios do caminho que nos leva à “Indesejada das gentes”. Sua morte é vista inicialmente sob um ponto de vista externo: para seus colegas de trabalho, era a possibilidade de promoção na repartição em que trabalha, dado que um posto se tornaria vago; para sua mulher, é o fim de um casamento que se arrastou por décadas e a possibilidade de abocanhar algum do Tesouro Público.

Apesar disso, o livro move-se a partir de outras hipocrisias — muitas das quais consideradas comuns até mesmo entre nós quando se fala sobre morte. Tendo consciência da inevitabilidade de seu passamento, Ivan Ilitch se revolta contra os discursos dos médicos, que falam somente sobre seus rins e seu ceco, mas nunca sobre a vida e a morte. Revolta-se contra a hipocrisia familiar, que trata sua angústia como algo passageiro, que não compreende a aproximação do fim.

Ivan Ilitch encontra conforto somente na figura de seu empregado Guerássim, que compreende suas frustrações e age naturalmente diante do moribundo. Essa simplicidade aproxima as personagens, tão distantes socialmente, mas tão irmanadas no tratamento do mais humano dos assuntos.

Leandro S. Megna

TOLSTÓI, Lev. A morte de Ivan Ilitch. Tradução de Boris Schnaiderman. São Paulo. Editora 34: 2006.

7 de janeiro de 2012

“Isso não pode durar muito!”


Continuando nossa jornada pelas literaturas pouco conhecidas para nós brasileiros, partiremos para o tcheco Karel Čapek. A edição de suas Histórias apócrifas, traduzidas pelo professor Aleksandar Jovanovic (do qual eu tive o prazer imenso de ser aluno e comprovar seu amplo conhecimento sobre as línguas e literaturas do Leste Europeu), reúne contos que abordam situações inusitadas, como o julgamento de Prometeu por ter roubado o fogo dos deuses, as “fofocas” que corriam entre os soldados gregos que lutavam em Troia, etc. Todas as situações são tratadas com uma atualidade incrível e contam com uma ironia muito refinada.

Porém, vou me concentrar aqui em um conto que me impressionou bastante: trata-se do segundo conto do livro, chamado Sobre a decadência dos tempos. Esse conto é um grito contra o conservadorismo e certos discursos tradicionalistas que ainda imperam entre nós. É uma ironia patente o fato de o conto ter como pano de fundo um diálogo entre dois velhos (um senhor e uma senhora) que viviam na mesma aldeia durante a Idade da Pedra.

As duas personagens lamentam algumas posturas dos mais jovens. O velho Janecek lamenta que suas tradicionais lanças em pedra lascada já tenham caído em desuso devido à descoberta de um novo material, mais fácil de manusear, ainda que mais frágil: o osso. A velha Janecková não consegue admitir a eficácia da nova técnica de curtir o couro de urso (utilizando cinzas) em detrimento de sua tradicional esfregação do couro na pedra. O fato é que o único argumento utilizado pelos velhos contra as novas técnicas é o velho “sempre se fez assim”.

Čapek consegue captar a recepção duvidosa que certas inovações sofrem. O velho Janecek mostra-se hesitante quanto à nova técnica de troca de mercadorias: “Se eu abato o sujeito que encontro pela frente e tomo seus bens, fico com as mercadorias dele sem dar nada em troca”. Algumas atitudes absurdas são perpetuadas pelo simples motivo de sempre terem sido praticadas. O conto, escrito em 1931, ganha maior significação quando consideramos que nesse momento surgiam os grandes movimentos totalitários, de extrema-direita, que buscavam as raízes tradicionais de determinados povos, supostamente defendendo-os de novas ideias “subversivas” e que, na verdade, só ameaçavam o status quo de determinados grupos dominantes.

Além disso, a ironia maior está por vir. Em sua lamentação final, o velho amplia seus maus augúrios pressagiando um fim próximo a uma humanidade que, paradoxalmente, evoluiria graças às inovações às quais ele dirigiu suas imprecações: “Pois eu lhe digo uma coisa — ergueu a voz Janecek, o homem das cavernas, num arroubo profético —, isso não pode durar muito!”.

Leandro S. Megna

ČAPEK, Karel. Sobre a decadência dos tempos. In: Histórias apócrifas. Tradução de Aleksandar Jovanovic. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2009.

2 de janeiro de 2012

“Todos escolhem o mesmo caminho. Todos se vão.”

Um autor pouco conhecido no Brasil e muito reverenciado na América de língua espanhola. O mexicano Juan Rulfo é uma figura que se equipara, apesar de sua diminuta obra (quanto à extensão), aos grandes nomes da literatura latino-americana. Seu único romance, Pedro Páramo, aborda com um lirismo pungente a forte relação que existe entre a cultura mexicana e a morte. Pelo menos para mim, com meu parco conhecimento sobre o México, sempre pareceu notável a abordagem distinta — simultaneamente irreverente e respeitosa — que o país de Rulfo manteve ao abordar a “Indesejada das gentes”.

O pano de fundo é um filho que, quando do falecimento de sua mãe, parte para o poeirento povoado de Comala em busca de notícias de seu pai. Ao chegar, depara-se com um povoado desabitado, pelo menos por pessoas vivas. Apesar disso, passa a ter contato com diversos espíritos que penavam seus pecados pelas ruas da cidadezinha. A tênue linha que separa vivos e mortos torna-se mais tênue, atingindo a inexistência. Vivos e mortos, portanto, passam a compartilhar o mesmo estatuto.

Juan Preciado, o filho em busca de notícias do pai (Pedro Páramo) descobre então, em conversas com os espíritos que cruzavam seu caminho, que seu pai fora um rico fazendeiro, detentor de todas as terras da região e que sua mãe fora apenas uma de suas muitas esposas. Páramo era uma espécie de coronel “à brasileira”, dominador, cruel e manipulador. Porém, passa a sofrer reveses sucessivos: a morte de seu filho Miguel, a loucura de sua última esposa, Susana, etc. Esse fio condutor aproxima Juan Rulfo dos grandes nomes da literatura dos anos 50, notadamente da literatura latino-americana. A partir da fala do crítico Jorge Ruffinelli sobre o romance (“a fábula de um poder que se estraçalha contra o destino”), podemos aproximar os sofrimentos do todo poderoso Pedro Páramo aos de Paulo Honório, em São Bernardo de Graciliano.

Os capítulos descontínuos parecem tecer histórias paralelas que se convergem em um ponto comum: a morte. As várias personagens que vão surgindo são inicialmente desconexas à história central, mas vão ganhando importância à medida que a narrativa avança.

De linguagem contida e concisa, Rulfo mostra-se, sob meu humilde olhar, um adepto da corrente literária do século XX que busca nas particularidades, nas regionalidades o que existe de mais universal. Num poeirento povoado do estado de Jalisco, no centro do México, é possível encontrar e discutir as vicissitudes da morte. Foi possível também nas veredas dos sertões de Minas Gerais, no centro do Brasil, discutir as relações entre o bem e o mal, entre Deus e o Diabo.

O mais impressionante é que se termina de ler Pedro Páramo com a sensação de se ter conhecido um pouco sobre a cultura do México sem deixar de lado um dos assuntos mais caros à literatura: a morte.

Leandro S. Megna

RULFO, Juan. Pedro Páramo e Chão em chamas. Tradução de Eric Nepomuceno. 5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2008.