19 de fevereiro de 2012

As hipocrisias da morte


“Depois que um homem aprende a pensar, pensa sempre na própria morte, pouco importa em que esteja pensando. Todos os filósofos fizeram assim. E que verdade pode haver uma vez que existe a morte?”

Essa afirmação, feita por Tolstói a Górki sintetiza bem o seu interesse, quase (ou totalmente) obsessivo, por esse tema, tão recorrente em sua obra. E, de fato, a morte é um dos temas mais caros à literatura universal e é explorada em seus mais diversos matizes na obra do russo Lev Tolstói (1828-1910).

A novela A morte de Ivan Ilitch é uma daqueles livros que, como afirma Paulo Rónai, torna-se inesquecível na vida daquele que lê, porque, apesar de se passar numa Rússia do século XIX, tempo e lugar muito distantes para nós, brasileiros do século XXI, tange o tema mais universal que se pode conceber: a morte.

Exemplo maior da humanização da arte, em detrimento dos grandes conceitos platônicos sobre os quais repousava a arte pré-burguesa, essa novela toca na morte como condição inerente ao homem, conceito rés do chão, muito distante da Morte, com letra maiúscula, dos grandes classicistas. Essa que é tema de discussões, mas que se reconfigura completamente quando se nos apresenta pessoalmente, porque admitimos que temos certa profundidade.

“O exemplo do silogismo que ele aprendera na Lógica de Kiesewetter: Caio é um homem, os homens são mortais, logo Caio é mortal, parecera-lhe, durante toda a vida, correto somente em relação a Caio, mas de modo algum em relação a ele. Tratava-se de Caio-homem, um homem em geral, e neste caso era absolutamente justo; mas ele não era Caio, não era um homem em geral (...). Existiu porventura para Caio aquele cheiro da pequena bola de couro listada, de que ele gostara tanto?! Porventura Caio beijava daquela maneira a mão da mãe, acaso farfalhou para ele daquela maneira, a seda das dobras do vestido da mãe? (...) Estivera Caio apaixonado? E era capaz de conduzir assim uma sessão de tribunal?”

Ivan Ilitch é um juiz que, após uma queda acidental, começa a padecer todos os estágios do caminho que nos leva à “Indesejada das gentes”. Sua morte é vista inicialmente sob um ponto de vista externo: para seus colegas de trabalho, era a possibilidade de promoção na repartição em que trabalha, dado que um posto se tornaria vago; para sua mulher, é o fim de um casamento que se arrastou por décadas e a possibilidade de abocanhar algum do Tesouro Público.

Apesar disso, o livro move-se a partir de outras hipocrisias — muitas das quais consideradas comuns até mesmo entre nós quando se fala sobre morte. Tendo consciência da inevitabilidade de seu passamento, Ivan Ilitch se revolta contra os discursos dos médicos, que falam somente sobre seus rins e seu ceco, mas nunca sobre a vida e a morte. Revolta-se contra a hipocrisia familiar, que trata sua angústia como algo passageiro, que não compreende a aproximação do fim.

Ivan Ilitch encontra conforto somente na figura de seu empregado Guerássim, que compreende suas frustrações e age naturalmente diante do moribundo. Essa simplicidade aproxima as personagens, tão distantes socialmente, mas tão irmanadas no tratamento do mais humano dos assuntos.

Leandro S. Megna

TOLSTÓI, Lev. A morte de Ivan Ilitch. Tradução de Boris Schnaiderman. São Paulo. Editora 34: 2006.

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