21 de fevereiro de 2012

Felicidade(s)

Não pude me furtar a escrever novamente acerca de mais um conto contido na “Nova Antologia do Conto Russo”, do professor Bruno Barretto Gomide. Trata-se, agora, do fantástico (considere a ambiguidade da palavra) conto de Vladímir Odóievski.

O texto, que utiliza o recurso das epístolas e da fala do próprio editor, constrói-se sobre uma verossimilhança formidável. Trata de um homem que, tendo herdado de seu tio uma propriedade rural, muda-se para o campo. À primeira impressão, de que a vida simples, rural, sem preocupação era um bom reinício, sobrepõe-se sua segunda impressão: de que as pessoas do campo, exatamente por não terem as vaidades dos urbanos são mais puramente mesquinhas, ambiciosas, imorais e insensatas.

Em decorrência disso, Platon Mikhaílovitch (esse nome será de extrema importância no decorrer da narrativa) mergulha-se na leitura da biblioteca secreta de seu tio, que continha livros sobre esoterismo e alquimia. Suas experiências o levam a um mundo paralelo e o isolam de sua vida social, especialmente do casamento que arranjara com a filha de um rico fazendeiro, vizinho de sua propriedade.

Seu isolamento leva o destinatário de suas cartas a suas terras, a fim de averiguar o isolamento do amigo. Acompanhado de um médico, encontram-no deitado, em estado de semiconsciência, e passam a medicá-lo e a provocar-lhe os sentidos. Depois de parcialmente restabelecido, o amigo rearranja seu casamento e parte.

Algum tempo depois, o amigo volta à casa de Mikhaílovitch e encontra seu amigo bem casado, com os rendimentos regulares e a propriedade bastante produtiva. Ao ser perguntado se é feliz, Mikhaílovitch responde que é feliz segundo os padrões estabelecidos pela sociedade e por esse mundo, mas que fora muito mais feliz quando tinha toda a verdade revelada diante de seus olhos, a partir dos estudos a que se dedicara. Assim como no mito da caverna, de Platão, a felicidade pode se consumar em vários níveis de profundidade, mas somente em um deles ela é verdadeira.

Todo o conto gira em torno de uma estrutura cíclica, magnificamente construída. No início do conto, quando ainda estava deslumbrado com a simplicidade do campo, Mikhaílovitch afirmou que “a verdadeira felicidade pode consistir apenas em saber tudo ou não saber nada, e, uma vez que a primeira coisa é por ora impossível ao homem, ele deve escolher a segunda”.

Com a decepção diante dos homens do campo, nossa personagem passa a buscar o conhecimento, a partir da leitura e, paradoxalmente, atinge o mais simples dos conhecimentos: a verdade, que, segundo ele, nos é revelada de maneira evidente, mas que nos recusamos a ver.
Ao final, quando apresenta a seu amigo a tese de que sua felicidade terrena é parcial, constrói a seguinte analogia:

Vocês, senhores sensatos, são semelhantes ao marceneiro a quem ordenaram fazer uma caixa para conter caros instrumentos de física: ele tomou incorretamente as medidas, os instrumentos não cabiam nela; o que fazer? Mas a caixa estava pronta e bem envernizada. O artesão torneou os instrumentos; entortou aqui, endireitou acolá; eles couberam na caixa, assentaram-se perfeitamente, dava até gosto de olhar. Só havia uma coisa errada: os instrumentos estavam danificados. Senhores! Os instrumentos não são para a caixa; a caixa é para os instrumentos! Façam a caixa de acordo com os instrumentos, não os instrumentos de acordo com a caixa.

Depois disso, Mikhaílovitch tornou-se um rico fazendeiro, bem casado, capitalista, dono de terra, ignorante — e feliz!

Leandro S. Megna

ODÓIEVSKI, Vladímir. A sílfide. In: Nova Antologia do Conto Russo. Tradução de Lucas Simone. Organização de Bruno Barretto Gomide. São Paulo: Editora 34, 2011.

Um comentário:

  1. O conceito de verdade e felicidade expresso neste texto assemelha-se muito ao conceito de felicidade oriental, tanto pelo estado no qual o autor o autor se encontrava enquanto buscava seu estado de prazer que se assemelha muito À meditação, quanto a forma na qual ele caracteriza a verdade como sendo única e simples. Me parece um texto fascinante, principalmente vindo de uma origem ocidental.

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