9 de abril de 2020

"Tudo o que não é vida, é literatura"

Um revisor de textos de meia idade, mais um livro insípido de História. Raimundo Silva, um comum lisboeta, funcionário de uma editora. Diante dele, mais um livro recontando o que todos já conhecem: a história do cerco de Lisboa.

Lisboa fora ocupada pelos árabes no ano 714. Os mouros, denominação com que os cristãos se referiam aos árabes, lá permaneceram até 1147. Com o apoio dos cruzados, reunidos pelo Papa Eugênio III, o rei D. Afonso Henriques, cujo reino se restringia à região norte do atual território português, organiza uma expedição de retomada da cidade. A história "oficial", conhecida por todos os portugueses, é recontada no volume que Raimundo Silva tem nas mãos com o objetivo de examinar, emendar e corrigir possíveis desvios textuais.

Diante da monotonia de ver e rever o já conhecido, Raimundo, em um momento de ímpeto corajoso e, ao mesmo tempo, rebelde, faz o que poria em risco sua reputação profissional: no trecho em que o historiador anunciava a máxima "os cruzados auxiliarão os portugueses a tomar Lisboa", Raimundo Silva acrescenta uma palavra. Não uma palavra qualquer, não uma mera sugestão estilística, mas um palavra que deturpa não somente a pesquisa de um historiador acadêmico ao qual Raimundo devia alguma fidelidade, mas também a própria História consagrada e consumada. Raimundo Silva, em sua revisão, acrescenta um violento "NÃO". Agora o texto afirma que "os cruzados NÃO auxiliarão os portugueses a tomar Lisboa". Quais as consequências desse ato subversivo para com a História da gloriosa nação que nascia ali?

Esse repentino ato leva a reflexões muito diversas, de cunho filosófico, acadêmico e político. Questionando a autoridade daquilo que tem autoridade somente por estar escrito, Saramago nos relembra do famoso caso da afirmação aristotélica de que as moscas possuíam quatro patas, ao passo que qualquer criança, por meio da mais leve constatação, concluiria, sem margem a erro, que o número era seis. Acontece que a autoridade do filósofo grego era tanta que por séculos os manuais de anatomia animal reproduziam, a despeito de qualquer observação simples, que eram quatro as patas dos insetos. Sobre aquele que, com a "inocência" de questionar o prestígio do pensador, questionasse o fato, recaíam as maiores injúrias.

Aflito com as consequências profissionais que teria a descoberta de seu ato, Raimundo Silva começa a imaginar como seria realmente a cidade em que vivia se os portugueses não tivessem sido auxiliados pelos cruzados há mais de 800 anos. Descoberto o imperdoável desvio, Raimundo Silva é chamado à editora, é advertido e comunicado que uma nova contratada seria responsável pelo trabalho dos revisores, a fim de que deslizes como esse, intencionais ou não, não mais ocorram. 

Em um primeiro contato, bastante tenso, Raimundo e Maria Sara trocam farpas sobre a culpa do erro, logo reconhecido pelo revisor. No entanto, ocorre o inesperado. Em sua tediosa vida, Raimundo Silva começa a experimentar sensações nova (ou no mínimo que não sentia há muito tempo): passa a se sentir atraído por Maria Sara. Saramago descreve a aproximação entre esses dois de maneira muito sutil, quase adolescente, provando que o amor por nascer e frutificar em qualquer fase da vida. Para seu alento, Raimundo Silva descobre, por meio de um telefonema, que Maria Sara sentia o mesmo.

É justamente dela, sua superior no trabalho na editora, que surge a proposta de Raimundo Silva, de revisor, tornar-se escritor. Maria Sara lhe propõe escrever uma história em que de fato os cruzados não tenham ajudado os portugueses das antigas eras a tomar a cidade das mãos dos mouros. Raimundo aceita a proposta após alguma resistência. A partir daí, a História "oficial", a história que Raimundo reescrevia  e a vida real (de Raimundo e Maria Sara, que, para nós leitores, é outra história) passam a se misturar, entremeados pelas deliciosas, e, por vezes, bastante complexas, considerações e provocações políticas, filosóficas e religiosas de Saramago.

Um livro altamente metalinguístico, no qual a reflexão sobre o fazer literário se dá em diversos níveis: seja no lugar de Saramago refletindo sobre os procedimentos narrativos de seu romance e do desenrolar da relação entre Raimundo e Maria Sara, seja no lugar de Raimundo refletindo sobre os procedimentos narrativos da história deturpada de Portugal que se comprometera a escrever. Toda a temática do livro já se antecipada no diá
logo com que o romance começa, entre o historiador e Raimundo. É lá que Raimundo enuncia que tudo o que não é vida, é literatura, incluindo a História. Essa provocação nos convida a pensar sobre as versões que conhecemos dos fatos passados e, consequentemente, sobre as nossas convicções atuais. Com uma linguagem bastante sofisticada e uma ironia fina a que algumas mentes menos avisadas não conseguem alcançar, Saramago constrói um cruzamento de personagens, separados por 800 anos de distância, ainda que estejam nas mesmas terras, sob as vistas de um mesmo rio.

SARAMAGO, José. História do cerco de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

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