28 de março de 2020

A anatomia da ira vertiginosa

Em uma nova tentativa de retomar as postagens, agora em tempos de quarentena, gostaria de escrever sobre um livro que li por volta de 2006 e, ontem, li novamente. Trata-se de um dos únicos dois romances de Raduan Nassar, "Um copo de cólera".

Nassar, que hoje vive no interior de São Paulo, teve uma muitíssimo breve carreira de escritor. Depois de ter escrito dois romances e alguns contos, Nassar se retirou da cena literária. Quando questionado sobre a retomada de sua carreira, o autor responde não ter nada mais a dizer ao mundo.

Construído como um fluxo de consciência contínuo de uma personagem masculina, a narrativa de "Um copo de cólera" nos faz imergir em um frenético arrolar de percepções, sentimentos e arroubos de raiva. Nos bastidores estão os pensamentos do narrador em busca de argumentos e palavras que poderiam ser empregados para ganhar uma discussão.

O romance começa com uma noite de intenso amor entre ambos. Como reféns do fluxo de consciência do narrador, somos obrigados a acompanhá-lo nos cálculos feitos durante o ritual do sexo, levados a analisar junto a ele as diversas ações e previsões construídas no intuito de demonstrar uma performance e de impressionar a parceira.

Na manhã seguinte, o narrador se depara com evento doméstico corriqueiro que o leva a tratar com rispidez uma das funcionárias da casa. A parceira, presenciando essa cena, se volta contra o narrador, condenando-lhe a postura autoritária.

Daí em diante começa a parte mais extensa do romance, chamada "Esporro". Com um título que remete simultaneamente ao ato sexual (a ejaculação) e à discordância de ideias, somos conduzidos por um paradoxo entre razão e emoção. Em um arrebatamento de ira, a troca de ofensas e insultos (o que está aparente) é apenas o resultado de pensamentos calculados (o que está escondido na mente) com o fim de destruir o argumento da parceira. A discussão entre as duas personagens, que passa por considerações políticas, afetivas, de idade e de posição social que cada um ocupa, vai desde ofensas pessoais até algumas reflexões metafísicas.

Ao leitor cabe apenas passear por seus revoltosos pensamentos e assistir ao desenrolar de ações cada vez mais violentas.

O resultado é um romance altamente dinâmico. Sua linguagem, que desrespeita convenções gramaticais de pontuação, busca reconstruir no campo da expressão a fluidez do pensamento humano. Além disso, o vocabulário, repleto de gírias e palavras de baixo calão, reconstrói a atmosfera de raiva, de ira e de cólera. O copo de cólera, de que o narrador se serve durante a violenta desavença, é inevitavelmente bebido também pelo leitor, atado a um momento de perda de razão.

Tanto "Um copo de cólera" quanto o outro romance de Nassar, "Lavoura arcaica", foram adaptados para o cinema.


NASSAR, Raduan. Um copo de cólera. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

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