A questão central da filosofia, segundo Camus, é o suicídio. Porém, antes disso, para poder responder se o suicídio é, de fato, um tema filosófico (ou se deveria receber somente um questionamento no campo da psicologia), a pergunta de base é "existe metafísica?". O mundo é tão somente aquilo que se revela a nossos olhos ou há um submundo, uma realidade oculta, uma verdade subjacente que o influencia e que nos influencia?
O segundo romance de Sándor Márai que comento aqui é Divórcio em Buda e gira em torno de um juiz, Kristóf Kömives, filho da decadente aristocracia húngara do entre-guerras, responsável por julgar casos de divórcio. Na agenda do dia seguinte, o processo referente ao divórcio de Imre Greiner e Anna Fazekas: ele, médico e um antigo amigo da escola; ela, uma mulher com quem Kristóf teve um affair no passado.
Uma longa digressão, que ocupa metade do romance, passeia pelo passado de Kristóf e desenha o homem racional e conservador que se tornou, personificado na parte mais antiga da capital húngara, Buda. Para ele, o casamento é indissolúvel, um pensamento profundamente paradoxal com a profissão que exerce: aquele que deve autorizar, diante da lei, a separação de duas pessoas. Sua mãe abandonou a família para viver com outro homem; seu pai fechou-se, e a criação dos filhos ocorreu de modo distante e impessoal; os anos no colégio católico; o ingresso no meio judiciário, sob a sombra da fama do pai. Rígido, severo e inflexível, busca sempre julgar de modo impessoal. Apesar de externamente ser convencional, Kristóf tem inquietações sobre a profissão, sobre a esposa e (paradoxalmente) sobre o convencionalismo que rege as aparências das sociedades modernas, nas quais as respostas já estão dadas antes das perguntas, porque a previsibilidade matou a espontaneidade. A situação política da Hungria, parte do antigo Império Austro-Húngaro, retalhado após derrota na Primeira Guerra, é o pano de fundo condizente com a melancolia que atravessa as personagens.O meio do romance dá uma guinada extraordinária. Ao retornar para casa em companhia da esposa, Hertha, a empregada avisa que um homem está à espera, na sala. O casal se irrita com a entrada de um desconhecido. Kristóf vai ao cômodo onde está o "visitante": é Imre Greiner, que veio confessar que assassinou Anna Fazerkas na noite anterior. O romance, então, se torna um longo monólogo, em que Imre, reconstrói todo o relacionamento que construiu com Anna.
Os dois se casam e vivem segundo as convenções esperadas de qualquer casal. Um incômodo, porém, corrói a alma de Imre e contamina o casamento: o médico sabe que, embora a relação seja amistosa, que haja amor e reciprocidade, há algo em Anna que ele não pode alcançar; seu desejo é possuí-la por completo, mas um indizível detalhe não lhe permite estar por completo, porque sente que esse mesmo detalhe impede que Anna também esteja por completo. O casamento fica insustentável e Anna sai de casa. Seis meses longe e o retorno ocorre quando da fixação da data em que o casal deve comparecer ao tribunal para por fim ao matrimônio. Anna volta a Budapeste e, na noite anterior, propõe um encontro com Imre. No longo diálogo, Anna revela que o período de solidão lhe permitiu ver que esteve durante todos esses anos, dez ao todo, presa a Kristóf, de quem recebeu um chamado posteriormente engolido pelos convencionalismos da vida dita normal. Era esse o indizível detalhe que a impediu de se entregar por inteiro.
Ao buscar Kristóf às vésperas do julgamento que não mais aconteceria, Imre quer constatar se ele também recebeu esse chamado. O duro diálogo entre os dois antigos amigos poderia revelar duas verdades: a primeira é que a vida que Kristóf construiu com Hertha, os filhos, as obrigações sociais seriam também meros fantasmas impostos por determinações externas, assim como foi o casamento de Imre e Anna; a segunda verdade, aquela que Imre está efetivamente perscrutando, é a existência de uma realidade oculta, um submundo, uma verdade subjacente que influencia e que nos influencia. Se Kristóf responder "sim", que ele também sonhava com Anna nestes dez anos, que esse também era ou é um incômodo indizível em sua relação com Hertha, estaria comprovado que o mundo material, racional, duro e objetivo não é tudo o que existe.
Kristóf diz que sim. Ele também não pôde se esquecer de Anna neste tempo.
MÁRAI, Sándor. Divórcio em Buda. Tradução de Landislao Szabo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.