5 de janeiro de 2025

"Será possível que o amor também esteja contaminado por essa angústia e ambição?"

A questão central da filosofia, segundo Camus, é o suicídio. Porém, antes disso, para poder responder se o suicídio é, de fato, um tema filosófico (ou se deveria receber somente um questionamento no campo da psicologia), a pergunta de base é "existe metafísica?". O mundo é tão somente aquilo que se revela a nossos olhos ou há um submundo, uma realidade oculta, uma verdade subjacente que o influencia e que nos influencia? 

O segundo romance de Sándor Márai que comento aqui é Divórcio em Buda e gira em torno de um juiz, Kristóf Kömives, filho da decadente aristocracia húngara do entre-guerras, responsável por julgar casos de divórcio. Na agenda do dia seguinte, o processo referente ao divórcio de Imre Greiner e Anna Fazekas: ele, médico e um antigo amigo da escola; ela, uma mulher com quem Kristóf teve um affair no passado. 


Uma longa digressão, que ocupa metade do romance, passeia pelo passado de Kristóf e desenha o homem racional e conservador que se tornou, personificado na parte mais antiga da capital húngara, Buda. Para ele, o casamento é indissolúvel, um pensamento profundamente paradoxal com a profissão que exerce: aquele que deve autorizar, diante da lei, a separação de duas pessoas. Sua mãe abandonou a família para viver com outro homem; seu pai fechou-se, e a criação dos filhos ocorreu de modo distante e impessoal; os anos no colégio católico; o ingresso no meio judiciário, sob a sombra da fama do pai. Rígido, severo e inflexível, busca sempre julgar de modo impessoal. Apesar de externamente ser convencional, Kristóf tem inquietações sobre a profissão, sobre a esposa e (paradoxalmente) sobre o convencionalismo que rege as aparências das sociedades modernas, nas quais as respostas já estão dadas antes das perguntas, porque a previsibilidade matou a espontaneidade. A situação política da Hungria, parte do antigo Império Austro-Húngaro, retalhado após derrota na Primeira Guerra, é o pano de fundo condizente com a melancolia que atravessa as personagens.

O meio do romance dá uma guinada extraordinária. Ao retornar para casa em companhia da esposa, Hertha, a empregada avisa que um homem está à espera, na sala. O casal se irrita com a entrada de um desconhecido. Kristóf vai ao cômodo onde está o "visitante": é Imre Greiner, que veio confessar que assassinou Anna Fazerkas na noite anterior. O romance, então, se torna um longo monólogo, em que Imre, reconstrói todo o relacionamento que construiu com Anna. 

Os dois se casam e vivem segundo as convenções esperadas de qualquer casal. Um incômodo, porém, corrói a alma de Imre e contamina o casamento: o médico sabe que, embora a relação seja amistosa, que haja amor e reciprocidade, há algo em Anna que ele não pode alcançar; seu desejo é possuí-la por completo, mas um indizível detalhe não lhe permite estar por completo, porque sente que esse mesmo detalhe impede que Anna também esteja por completo. O casamento fica insustentável e Anna sai de casa. Seis meses longe e o retorno ocorre quando da fixação da data em que o casal deve comparecer ao tribunal para por fim ao matrimônio. Anna volta a Budapeste e, na noite anterior, propõe um encontro com Imre. No longo diálogo, Anna revela que o período de solidão lhe permitiu ver que esteve durante todos esses anos, dez ao todo, presa a Kristóf, de quem recebeu um chamado posteriormente engolido pelos convencionalismos da vida dita normal. Era esse o indizível detalhe que a impediu de se entregar por inteiro. 

Ao buscar Kristóf às vésperas do julgamento que não mais aconteceria, Imre quer constatar se ele também recebeu esse chamado. O duro diálogo entre os dois antigos amigos poderia revelar duas verdades: a primeira é que a vida que Kristóf construiu com Hertha, os filhos, as obrigações sociais seriam também meros fantasmas impostos por determinações externas, assim como foi o casamento de Imre e Anna; a segunda verdade, aquela que Imre está efetivamente perscrutando, é a existência de uma realidade oculta, um submundo, uma verdade subjacente que influencia e que nos influencia. Se Kristóf responder "sim", que ele também sonhava com Anna nestes dez anos, que esse também era ou é um incômodo indizível em sua relação com Hertha, estaria comprovado que o mundo material, racional, duro e objetivo não é tudo o que existe. 

Kristóf diz que sim. Ele também não pôde se esquecer de Anna neste tempo. 

MÁRAI, Sándor. Divórcio em Buda. Tradução de Landislao Szabo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

15 de dezembro de 2024

América Latina revisitada

Inspirado pelo anúncio da série na Netflix, resolvi reler Cem anos de solidão depois de mais de uma década da primeira leitura. Naquela ocasião, ainda na graduação de Letras, lembro-me de tentar empreender uma leitura sistemática, em conformidade com as teorias que aprendia e que tinham a pretensão de nortear como textos literários, em especial os clássicos,  devem ser lidos e interpretados. Confesso que, embora tenha reconhecido a grandiosidade da obra à época, não consegui entrever contundentes críticas e profundos significados além da inquestionável riqueza formal da obra.

Alguns anos depois, retiro o mesmo e já envelhecido livro da prateleira. Livro que já era envelhecido quando da primeira leitura, pois comprado em um sebo. É senso comum dizer que toda obra lida em momentos diferentes da vida se torna outra, e desta vez não foi diferente. A leitura descompromissada, fluida e talvez mais amparada em repertório que somente a vivência real permite ter. Terminei hoje de ler e já assisti a alguns episódios da série.

Toda pessoa que já tenha ouvido falar de Cem anos de solidão sabe que o enredo explora a saga de uma longa linhagem, dos Buendía, nascida com os ancestrais José Arcadio e Úrsula, que decidem, após um duelo, atravessar a cordilheira e fundar uma nova cidade. As razões que levaram a essa decisão podem passar despercebidas por um estudante de Letras ávido por uma leitura estrutural. No entanto, essas razões são, sob minha perspectiva, o primeiro ponto de inflexão da narrativa, o que permite alinhá-la com justeza à realidade latino-americana. Quero me deter nestas razões, porque elas se repetem em todo o restante da trama.

José Arcadio Buendía e Úrsula Iguarán pertencem a duas famílias cujos vínculos remontam a tempos imemoriais. O temor de que seus laços sanguíneos levem ao nascimento de aberrações (iguanas ou crianças com rabos de porco) faz com que Úrsula use, nos primeiros meses após o casamento, um cinto de castidade. É com base nos rumores de que o casamento ainda não se consumara que Prudêncio Aguilar, irritado com a derrota em uma rinha de galo, ofende a masculinidade de José Arcadio. A morte de Prudêncio em um duelo e a insistente assombração de seu espectro obrigam o casal a partir. Linhagens entrecruzadas, masculinidade premente de afirmação constante, superstições, duelos pela honra e a presença do sobrenatural prenunciam o cenário de uma América Latina ancestral, mas cujos traços essenciais persistem.

O desenrolar da trama se dá em Macondo, isolada da mundo, a não ser pelas visitas constantes de um grupo de ciganos, liderados por Melquíades. É esse personagem, que se tornaria central, o responsável por apresentar novidades científicas (o ímã, o gelo, o daguerreótipo) que, por sua vez, são assimiladas pelos habitantes do vilarejo sob um véu do misticismo. Nessa impossibilidade de distinguir o físico do metafísico, o natural do mágico, reside a narrativa. 

Macondo é um microcosmo da Colômbia, é um metonímia da América colonizada. Sintomático é o momento em que o místico José Arcadio debocha da índia Visitación quando esta lhe comunica a epidemia de insônia que assolara sua aldeia e que parecia estar se instalando em Macondo. O oculto e o transcendental existem e são aceitos, mas quando vem do outro é motivo de zombaria. São os mesmos ultrarreligiosos que se acusam mutuamente de charlatanismo. 

Outro aspecto que torna Macondo o reduzido reflexo perfeito da América colonizada é a oposição entre seu surgimento orgânico, laico, espontâneo e as paulatinas imposições institucionais personificadas em Apolinar Moscote, enviado do governo central. A liberdade dos habitantes é inicialmente confrontada pela imposição de um Estado, que chega a obrigá-los a pintar as paredes das casas de azul; depois, é a institucionalização dos rituais religiosos, como o casamento e o batismo; por fim, a construção de escolas regulares. A originária autenticidade de Macondo está, assim, extinta e o já antigo confronto entre a fé religiosa e o racionalismo científico, que remonta às origens barrocas da identidade latino-americana, adquire um elemento novo.

A longa descendência dos Buendía terá figuras importantes, como o Coronel Aureliano Buendía, filho do casal fundador. Uma figura política importante que lutará contra o partido conservador em favor dos menos favorecidos, mas que, em pouco tempo, se tornará a síntese do autoritarismo. Arcadio, seu sobrinho, também instaura sobre Macondo anos de chumbo. Politicamente despótica e com costumes lascivos, a ambiguidade é marca indelével da cidade.

Personagens surgem e desaparecem: Rebeca, com sua misteriosa origem e o saco em que carregava os ossos de seus pais; Amaranta, última filha do casal Buendía; Pilar Ternera, cartomante marginalizada que também se presta a favores sexuais; Fernanda del Carpio, que tenta impor costumes de sua origem aristocrática, tão distantes da realidade de Macondo. Entretanto, é Úrsula que persiste como um alicerce do ideário inicial que animou os fundadores. A decadência, porém, é inevitável; a frouxidão dos costumes (não se trata de um conceito moralista) impõe aos habitantes o reconhecimento de que o destino, manifesto na repetição dos nomes das personagens, é implacável contra aqueles que são incapazes de aprender com os tropeços do passado. 

É um livro sobre autoritarismo, sobre um destino inexorável e uma interminável repetição de erros que construiu somente mazelas, que se perpetuam nestas terras. Duas considerações devem ser retiradas ao final desta longa jornada de leitura, uma interna à história e outra da minha experiência de observador-leitor.

A primeira está no final do enredo, quando o último dos Aurelianos consegue, enfim, decifrar as premonições de Melquíades. Na verdade, é no final que ele consegue mesmo descobrir que aqueles escritos eram premonições. Termina lendo justa e exatamente o que acontecia do lado de fora do ambiente mágico do laboratório de alquimia: um ciclone destruía a cidade depois do nascimento da temida criança com rabo de porco, fruto de uma incestuosa relação com sua tia. É, portanto, a história de uma história que já estava contada, faltava-lhe a capacidade de ler. Para nós, latino-americanos, nossa história também já está contada e o final é previsível: enquanto eternizarmos as mesmas relações que nos deram origem, ainda que por vezes lhes
demos pequenas variações de nomes, o fim será a derrocada total. Na estrutura mais íntima, vivemos sob os mesmos sustentáculos dos colonizadores, que impuseram distinções intransponíveis entre pessoas, seja sob o nome de escravidão, seja sob qualquer outro nome contemporâneo. Isso para citar apenas uma de nossas heranças.

A segunda consideração que me ocorre diz respeito àquele estudante de Letras que pretendia assimilar infalíveis ferramentas que lhe permitissem ler narrativas complexas a fim de se apropriar de seus mais íntimos sentidos. A lição que fica é que, quando a narrativa é realmente complexa, como o é Cem anos de solidão, as frias ferramentas têm uma utilidade secundária. São obras que exigem espírito antes de tudo. Na sensibilidade está a mais importante ferramenta, aquela que dá a oportunidade de entender uma personagem, um cenário, uma situação, como parte da sua própria vida, como identidade. Por ter nascido na América Latina estou convicto de que compreendi o mais profundo sentido da solidão segundo
García Márquez. 

MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão. Tradução de Eliane Zagury. Rio de Janeiro: Record, 1995.

19 de maio de 2024

Almas de margens opostas jamais se encontram verdadeiramente


Hungria, 1940. Henrik é um aristocrata não somente velho, mas envelhecido pelo tempo, pelas guerras e revoluções que presenciou e por uma espera. Ha 41 anos, ele espera poder esclarecer os fatos de um dia de junho de 1899. De origem nobre, sua linhagem e seus antepassados já haviam escrito seu destino: tornou-se um general disciplinado e obediente, próximo do imperador da Áustria-Hungria, de quem seus pais foram inclusive anfitriões.


É na escola de oficiais que Henrik, ainda adolescente, conhece Konrad, também fidalgo, ainda que de família decadente, que se desdobra em esforços além do limite para manter o filho em contato com a nobreza austríaca. Quando seu amigo é apresentado a seu pai, durante uma visita à família, o pai o adverte: “Konrad não é um soldado como nós”. A esse alerta, o pequeno Henrik não presta muita atenção, talvez por não tê-lo entendido completamente. Durante essa mesma visita, Henrik observa sua mãe e seu amigo Konrad embebidos pela música que tocam no piano. A música sempre o entediou muito: jamais compreendeu como algo tão abstrato pudesse comunicar o que quer que fosse.


Os anos passam, os amigos permanecem juntos, em caçadas e nas fúteis atividades da vida aristocrática. Henrik casa-se com Krisztina, mulher que também possui uma alma mais sensível às sutilezas, antípoda do espírito cartesiano e metódico de Henrik. 


Em uma manhã, durante uma caçada, Henrik observa que Konrad aponta-lhe a arma. Espera, sem entender, que o tiro lhe acerte a cabeça. Konrad, porém, recua e, sem nada dizer, retira-se. Henrik retorna à casa e encontra Krisztina surpresa. Surge, então, uma desconfiança. Na mesma noite de 1899, Henrik vai à casa de Konrad e descobre que o amigo fugira. Krisztina chega em seguida e apenas diz: “Era mesmo um covarde”. Daí em diante, o aristocrata tranca-se em uma ala de seu castelo, não se encontra mais nem com Krisztina, nem com Konrad, de quem ele deixa de ter notícias por 41 anos. Passam-se duas guerras mundiais, Krisztina morre. O isolamento de Henrik, entretanto, permanece, à espera de que Konrad em algum momento retorne para esclarecer o fatídico dia. 


Eis que o dia chega e os dois velhos encontram-se no castelo de Henrik. O que deveria ser um diálogo, torna-se um longuíssimo monólogo de Henrik (bem possivelmente um reflexo de sua vaidade) perscrutando temas com a amizade, a honra e as inclinações da alma humana. Konrad não tem chance de falar. Na verdade, foram 41 anos preparando esse discurso, que, por fim, conclui que há dois tipos de espíritos: aqueles sensíveis à música, como de Krisztina, Konrad e da mãe de Henrik; e aqueles que não a compreendem. Foi a música que permitiu que Krisztina e Konrad se aproximassem, se comunicassem e se amassem sem deixar rastros que gerassem qualquer desconfiança de Henrik.


Um livro denso, que exige do leitor atenção para mergulhar nos melindres da análise feita por aquele que se acreditava racional, mas se revelou frágil quando a vida assim exigiu. Mais do que um romance, o livro se aproxima de um tratado filosófico sobre as relações humanas e sobre as complexas motivações do ser humano.


MÁRAI, Sándor. As brasas. Tradução de Rosa Freire d'Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

26 de abril de 2020

A arte é menos hipócrita do que a realidade

Diferentemente do que venho fazendo até agora neste blog, hoje decidi escrever sobre um filme: o argentino O Cidadão Ilustre, de 2016.

Um escritor argentino mundialmente renomado, Daniel Mantovani, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, retorna à cidadezinha onde nasceu, Salas, depois de quarenta anos vivendo na Europa. Sua chegada, a princípio muito festejada, altera a vida de toda a população, reavivando tensões antigas e fazendo emergir tensões novas, embora sempre latentes, em uma sociedade conservadora e hipócrita.

Quando de sua chegada, o imortal é convidado a inúmeros eventos promovidos pela prefeitura, em uma clara demonstração de autopromoção política do prefeito. Além desses eventos, alguns antigos conhecidos de Daniel aparecem, como seu amigo de infância, Antonio. Agora casado com a namorada da adolescência de Daniel, Irene, Antonio tem uma vida confortável, uma padrão muito superior à média do restante da população, alcançado pela exploração do turismo de caça.

 Em um encontro intimista, Irene informa a Daniel que nunca o superou e ambos se beijam.O primeiro elemento de tensão se instala, dado o comportamento um tanto agressivo que Antonio parece ter.

No entanto, a tensão ainda aumentaria muito. Em uma das palestras de que Daniel participa na cidade, é confrontado por uma jovem, Julia. De modo bastante atrevido, Julia invade o quarto em que Daniel estava hospedado e ambos transam.

Em uma visita à casa de Antonio, com a presença de Irene, a tensão podia ser quase palpável. Contudo, o clima se tornaria ainda mais problemático quando, durante um diálogo em que Daniel contava a Antonio sobre a garota (uma verdadeira puta, nas palavra do escritor) com que transara na noite anterior, chegam, em uma moto, duas pessoas à casa do anfitrião. Ao tirarem o capacete, o espectador descobre que uma das pessoas recém-chegadas é Julia, filha de Antonio e namorada de um personagem animalesco, que conseguia tão somente emitir sons guturais.

Além da grande tensão na relação estabelecida com o antigo amigo, Daniel tem de enfrentar a resistência de um grupo de moradores, que o acusa de ter enriquecido por meio da deturpação da honra dos moradores da cidade, descritos em seus romances como hipócritas e aproveitadores. Daniel é apresentado como alguém que se vendeu ao gosto europeu, descrevendo os argentinos (ou mais especificamente os moradores de Salas) como brutos.

Daríamos razão aos acusadores de Daniel se inúmeras relações entre os habitantes da cidade não demonstrassem que sua ficção estava mais próxima da realidade do que se imaginava. Os recorrentes casos extraconjugais de Antonio, a autopromoção quase extorsiva do prefeito, as fraudes no concurso de arte promovido entre os moradores do lugar acabam por dar veracidade à maneira pouco elogiosa com que Daniel descrevera, nos romances que o consagrou, a sociedade de onde saiu.

Sua permanência da cidade fica insustentável e precisa ter seu retorno antecipado. Correndo risco de vida depois ter trazido à tona toda a rede de ódio e hipocrisia latente no vilarejo, Daniel sofre um atentado promovido justamente por seu amigo de infância.

Tendo retornado à Europa, Daniel lança um novo livro, no qual conta suas experiências durante a permanência em Salas. Indagado sobre a verdade daquilo que relatou em sua nova obra, Daniel apresenta um discurso surpreendente que mostra que a arte, ainda que ficcional, pode ser menos mentirosa e hipócrita do que as relações que as pessoas constroem.

Um filme que, no início, parece ser apenas o retorno de alguém às suas saudosas origens, marcadas pelas doces lembranças da infância revela-se um grande grito de socorro àqueles que se sentem desajustados no lugar em que vivem e que fazem muito bem em buscar novos cenários, por vezes mais saudáveis. Inicialmente admirado como um verdadeiro deus, Daniel aos poucos se transforma em uma figura invejada para, ao final, tornar-se odiado por seus conterrâneos. Tudo devido à agudeza de seu olhar sobre as dissimuladas estruturas sociais de um vilarejo.

Mariano Cohn e Gastón Duprat. O cidadão ilustre. Argentina, 2016.

9 de abril de 2020

"Tudo o que não é vida, é literatura"

Um revisor de textos de meia idade, mais um livro insípido de História. Raimundo Silva, um comum lisboeta, funcionário de uma editora. Diante dele, mais um livro recontando o que todos já conhecem: a história do cerco de Lisboa.

Lisboa fora ocupada pelos árabes no ano 714. Os mouros, denominação com que os cristãos se referiam aos árabes, lá permaneceram até 1147. Com o apoio dos cruzados, reunidos pelo Papa Eugênio III, o rei D. Afonso Henriques, cujo reino se restringia à região norte do atual território português, organiza uma expedição de retomada da cidade. A história "oficial", conhecida por todos os portugueses, é recontada no volume que Raimundo Silva tem nas mãos com o objetivo de examinar, emendar e corrigir possíveis desvios textuais.

Diante da monotonia de ver e rever o já conhecido, Raimundo, em um momento de ímpeto corajoso e, ao mesmo tempo, rebelde, faz o que poria em risco sua reputação profissional: no trecho em que o historiador anunciava a máxima "os cruzados auxiliarão os portugueses a tomar Lisboa", Raimundo Silva acrescenta uma palavra. Não uma palavra qualquer, não uma mera sugestão estilística, mas um palavra que deturpa não somente a pesquisa de um historiador acadêmico ao qual Raimundo devia alguma fidelidade, mas também a própria História consagrada e consumada. Raimundo Silva, em sua revisão, acrescenta um violento "NÃO". Agora o texto afirma que "os cruzados NÃO auxiliarão os portugueses a tomar Lisboa". Quais as consequências desse ato subversivo para com a História da gloriosa nação que nascia ali?

Esse repentino ato leva a reflexões muito diversas, de cunho filosófico, acadêmico e político. Questionando a autoridade daquilo que tem autoridade somente por estar escrito, Saramago nos relembra do famoso caso da afirmação aristotélica de que as moscas possuíam quatro patas, ao passo que qualquer criança, por meio da mais leve constatação, concluiria, sem margem a erro, que o número era seis. Acontece que a autoridade do filósofo grego era tanta que por séculos os manuais de anatomia animal reproduziam, a despeito de qualquer observação simples, que eram quatro as patas dos insetos. Sobre aquele que, com a "inocência" de questionar o prestígio do pensador, questionasse o fato, recaíam as maiores injúrias.

Aflito com as consequências profissionais que teria a descoberta de seu ato, Raimundo Silva começa a imaginar como seria realmente a cidade em que vivia se os portugueses não tivessem sido auxiliados pelos cruzados há mais de 800 anos. Descoberto o imperdoável desvio, Raimundo Silva é chamado à editora, é advertido e comunicado que uma nova contratada seria responsável pelo trabalho dos revisores, a fim de que deslizes como esse, intencionais ou não, não mais ocorram. 

Em um primeiro contato, bastante tenso, Raimundo e Maria Sara trocam farpas sobre a culpa do erro, logo reconhecido pelo revisor. No entanto, ocorre o inesperado. Em sua tediosa vida, Raimundo Silva começa a experimentar sensações nova (ou no mínimo que não sentia há muito tempo): passa a se sentir atraído por Maria Sara. Saramago descreve a aproximação entre esses dois de maneira muito sutil, quase adolescente, provando que o amor por nascer e frutificar em qualquer fase da vida. Para seu alento, Raimundo Silva descobre, por meio de um telefonema, que Maria Sara sentia o mesmo.

É justamente dela, sua superior no trabalho na editora, que surge a proposta de Raimundo Silva, de revisor, tornar-se escritor. Maria Sara lhe propõe escrever uma história em que de fato os cruzados não tenham ajudado os portugueses das antigas eras a tomar a cidade das mãos dos mouros. Raimundo aceita a proposta após alguma resistência. A partir daí, a História "oficial", a história que Raimundo reescrevia  e a vida real (de Raimundo e Maria Sara, que, para nós leitores, é outra história) passam a se misturar, entremeados pelas deliciosas, e, por vezes, bastante complexas, considerações e provocações políticas, filosóficas e religiosas de Saramago.

Um livro altamente metalinguístico, no qual a reflexão sobre o fazer literário se dá em diversos níveis: seja no lugar de Saramago refletindo sobre os procedimentos narrativos de seu romance e do desenrolar da relação entre Raimundo e Maria Sara, seja no lugar de Raimundo refletindo sobre os procedimentos narrativos da história deturpada de Portugal que se comprometera a escrever. Toda a temática do livro já se antecipada no diá
logo com que o romance começa, entre o historiador e Raimundo. É lá que Raimundo enuncia que tudo o que não é vida, é literatura, incluindo a História. Essa provocação nos convida a pensar sobre as versões que conhecemos dos fatos passados e, consequentemente, sobre as nossas convicções atuais. Com uma linguagem bastante sofisticada e uma ironia fina a que algumas mentes menos avisadas não conseguem alcançar, Saramago constrói um cruzamento de personagens, separados por 800 anos de distância, ainda que estejam nas mesmas terras, sob as vistas de um mesmo rio.

SARAMAGO, José. História do cerco de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

28 de março de 2020

A anatomia da ira vertiginosa

Em uma nova tentativa de retomar as postagens, agora em tempos de quarentena, gostaria de escrever sobre um livro que li por volta de 2006 e, ontem, li novamente. Trata-se de um dos únicos dois romances de Raduan Nassar, "Um copo de cólera".

Nassar, que hoje vive no interior de São Paulo, teve uma muitíssimo breve carreira de escritor. Depois de ter escrito dois romances e alguns contos, Nassar se retirou da cena literária. Quando questionado sobre a retomada de sua carreira, o autor responde não ter nada mais a dizer ao mundo.

Construído como um fluxo de consciência contínuo de uma personagem masculina, a narrativa de "Um copo de cólera" nos faz imergir em um frenético arrolar de percepções, sentimentos e arroubos de raiva. Nos bastidores estão os pensamentos do narrador em busca de argumentos e palavras que poderiam ser empregados para ganhar uma discussão.

O romance começa com uma noite de intenso amor entre ambos. Como reféns do fluxo de consciência do narrador, somos obrigados a acompanhá-lo nos cálculos feitos durante o ritual do sexo, levados a analisar junto a ele as diversas ações e previsões construídas no intuito de demonstrar uma performance e de impressionar a parceira.

Na manhã seguinte, o narrador se depara com evento doméstico corriqueiro que o leva a tratar com rispidez uma das funcionárias da casa. A parceira, presenciando essa cena, se volta contra o narrador, condenando-lhe a postura autoritária.

Daí em diante começa a parte mais extensa do romance, chamada "Esporro". Com um título que remete simultaneamente ao ato sexual (a ejaculação) e à discordância de ideias, somos conduzidos por um paradoxo entre razão e emoção. Em um arrebatamento de ira, a troca de ofensas e insultos (o que está aparente) é apenas o resultado de pensamentos calculados (o que está escondido na mente) com o fim de destruir o argumento da parceira. A discussão entre as duas personagens, que passa por considerações políticas, afetivas, de idade e de posição social que cada um ocupa, vai desde ofensas pessoais até algumas reflexões metafísicas.

Ao leitor cabe apenas passear por seus revoltosos pensamentos e assistir ao desenrolar de ações cada vez mais violentas.

O resultado é um romance altamente dinâmico. Sua linguagem, que desrespeita convenções gramaticais de pontuação, busca reconstruir no campo da expressão a fluidez do pensamento humano. Além disso, o vocabulário, repleto de gírias e palavras de baixo calão, reconstrói a atmosfera de raiva, de ira e de cólera. O copo de cólera, de que o narrador se serve durante a violenta desavença, é inevitavelmente bebido também pelo leitor, atado a um momento de perda de razão.

Tanto "Um copo de cólera" quanto o outro romance de Nassar, "Lavoura arcaica", foram adaptados para o cinema.


NASSAR, Raduan. Um copo de cólera. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

18 de setembro de 2014

Entre o livre-arbítrio e a História

Pretendendo retomar as publicações no blog, aventuro-me a apresentar um livro que também foi retomado. Muito reverenciado nos países de língua inglesa, em especial no contexto da literatura dos Estados Unidos, Philip Roth é autor de "Indignação", livro denso que nos surpreende ao mostrar o quão subversiva pode ser a cultura norte-americana.

A história do jovem Marcus Messner, judeu, filho de um açougueiro kosher que tem como único intuito ingressar na universidade a fim de se manter imune à convocação militar para a Guerra da Coreia, que se desenrolada naquele início da década de 50.

Vivendo na provinciana Newark (Nova Jersey), apresentada como um reduto de imigrantes que aproximava judeus, italianos e irlandeses, Messner inicialmente ingressa na universidade local. Porém, atritos familiares levam-no a buscar uma alternativa mais distante de casa, a Universidade Winesburg, no interior de Ohio, marcado por um intolerante protestantismo.

É no tradicionalismo do Meio-Oeste norte-americano, em oposição ao relativo progressismo que a proximidade com Nova York conferia a Newark, que Messner vai encontrar conflitos ainda maiores do que aqueles que o distanciaram de casa. Tais conflitos somados às descobertas amorosas e sexuais com as quais o jovem terá de conviver conduzirão Messner a um caminho sem volta. Aqui começa a contribuição decisiva de Olivia, jovem com distúrbios psiquiátricos e tendências suicidas.

Magistralmente tecido pelo ganhador do prêmio Pulitzer de 1997, "Indignação" retoma uma temática muito cara a historiadores como Eric Hobsbawn: a História não é o pano de fundo de nossas vidas, a História é o palco. O desafortunado Messner teve a infelicidade de tomar decisões incorretas (embora elas não se denunciassem como tal) em um momento histórico também desafortunado: a guerra.

ROTH, Philip. Indignação. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.