26 de abril de 2020

A arte é menos hipócrita do que a realidade

Diferentemente do que venho fazendo até agora neste blog, hoje decidi escrever sobre um filme: o argentino O Cidadão Ilustre, de 2016.

Um escritor argentino mundialmente renomado, Daniel Mantovani, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, retorna à cidadezinha onde nasceu, Salas, depois de quarenta anos vivendo na Europa. Sua chegada, a princípio muito festejada, altera a vida de toda a população, reavivando tensões antigas e fazendo emergir tensões novas, embora sempre latentes, em uma sociedade conservadora e hipócrita.

Quando de sua chegada, o imortal é convidado a inúmeros eventos promovidos pela prefeitura, em uma clara demonstração de autopromoção política do prefeito. Além desses eventos, alguns antigos conhecidos de Daniel aparecem, como seu amigo de infância, Antonio. Agora casado com a namorada da adolescência de Daniel, Irene, Antonio tem uma vida confortável, uma padrão muito superior à média do restante da população, alcançado pela exploração do turismo de caça.

 Em um encontro intimista, Irene informa a Daniel que nunca o superou e ambos se beijam.O primeiro elemento de tensão se instala, dado o comportamento um tanto agressivo que Antonio parece ter.

No entanto, a tensão ainda aumentaria muito. Em uma das palestras de que Daniel participa na cidade, é confrontado por uma jovem, Julia. De modo bastante atrevido, Julia invade o quarto em que Daniel estava hospedado e ambos transam.

Em uma visita à casa de Antonio, com a presença de Irene, a tensão podia ser quase palpável. Contudo, o clima se tornaria ainda mais problemático quando, durante um diálogo em que Daniel contava a Antonio sobre a garota (uma verdadeira puta, nas palavra do escritor) com que transara na noite anterior, chegam, em uma moto, duas pessoas à casa do anfitrião. Ao tirarem o capacete, o espectador descobre que uma das pessoas recém-chegadas é Julia, filha de Antonio e namorada de um personagem animalesco, que conseguia tão somente emitir sons guturais.

Além da grande tensão na relação estabelecida com o antigo amigo, Daniel tem de enfrentar a resistência de um grupo de moradores, que o acusa de ter enriquecido por meio da deturpação da honra dos moradores da cidade, descritos em seus romances como hipócritas e aproveitadores. Daniel é apresentado como alguém que se vendeu ao gosto europeu, descrevendo os argentinos (ou mais especificamente os moradores de Salas) como brutos.

Daríamos razão aos acusadores de Daniel se inúmeras relações entre os habitantes da cidade não demonstrassem que sua ficção estava mais próxima da realidade do que se imaginava. Os recorrentes casos extraconjugais de Antonio, a autopromoção quase extorsiva do prefeito, as fraudes no concurso de arte promovido entre os moradores do lugar acabam por dar veracidade à maneira pouco elogiosa com que Daniel descrevera, nos romances que o consagrou, a sociedade de onde saiu.

Sua permanência da cidade fica insustentável e precisa ter seu retorno antecipado. Correndo risco de vida depois ter trazido à tona toda a rede de ódio e hipocrisia latente no vilarejo, Daniel sofre um atentado promovido justamente por seu amigo de infância.

Tendo retornado à Europa, Daniel lança um novo livro, no qual conta suas experiências durante a permanência em Salas. Indagado sobre a verdade daquilo que relatou em sua nova obra, Daniel apresenta um discurso surpreendente que mostra que a arte, ainda que ficcional, pode ser menos mentirosa e hipócrita do que as relações que as pessoas constroem.

Um filme que, no início, parece ser apenas o retorno de alguém às suas saudosas origens, marcadas pelas doces lembranças da infância revela-se um grande grito de socorro àqueles que se sentem desajustados no lugar em que vivem e que fazem muito bem em buscar novos cenários, por vezes mais saudáveis. Inicialmente admirado como um verdadeiro deus, Daniel aos poucos se transforma em uma figura invejada para, ao final, tornar-se odiado por seus conterrâneos. Tudo devido à agudeza de seu olhar sobre as dissimuladas estruturas sociais de um vilarejo.

Mariano Cohn e Gastón Duprat. O cidadão ilustre. Argentina, 2016.

9 de abril de 2020

"Tudo o que não é vida, é literatura"

Um revisor de textos de meia idade, mais um livro insípido de História. Raimundo Silva, um comum lisboeta, funcionário de uma editora. Diante dele, mais um livro recontando o que todos já conhecem: a história do cerco de Lisboa.

Lisboa fora ocupada pelos árabes no ano 714. Os mouros, denominação com que os cristãos se referiam aos árabes, lá permaneceram até 1147. Com o apoio dos cruzados, reunidos pelo Papa Eugênio III, o rei D. Afonso Henriques, cujo reino se restringia à região norte do atual território português, organiza uma expedição de retomada da cidade. A história "oficial", conhecida por todos os portugueses, é recontada no volume que Raimundo Silva tem nas mãos com o objetivo de examinar, emendar e corrigir possíveis desvios textuais.

Diante da monotonia de ver e rever o já conhecido, Raimundo, em um momento de ímpeto corajoso e, ao mesmo tempo, rebelde, faz o que poria em risco sua reputação profissional: no trecho em que o historiador anunciava a máxima "os cruzados auxiliarão os portugueses a tomar Lisboa", Raimundo Silva acrescenta uma palavra. Não uma palavra qualquer, não uma mera sugestão estilística, mas um palavra que deturpa não somente a pesquisa de um historiador acadêmico ao qual Raimundo devia alguma fidelidade, mas também a própria História consagrada e consumada. Raimundo Silva, em sua revisão, acrescenta um violento "NÃO". Agora o texto afirma que "os cruzados NÃO auxiliarão os portugueses a tomar Lisboa". Quais as consequências desse ato subversivo para com a História da gloriosa nação que nascia ali?

Esse repentino ato leva a reflexões muito diversas, de cunho filosófico, acadêmico e político. Questionando a autoridade daquilo que tem autoridade somente por estar escrito, Saramago nos relembra do famoso caso da afirmação aristotélica de que as moscas possuíam quatro patas, ao passo que qualquer criança, por meio da mais leve constatação, concluiria, sem margem a erro, que o número era seis. Acontece que a autoridade do filósofo grego era tanta que por séculos os manuais de anatomia animal reproduziam, a despeito de qualquer observação simples, que eram quatro as patas dos insetos. Sobre aquele que, com a "inocência" de questionar o prestígio do pensador, questionasse o fato, recaíam as maiores injúrias.

Aflito com as consequências profissionais que teria a descoberta de seu ato, Raimundo Silva começa a imaginar como seria realmente a cidade em que vivia se os portugueses não tivessem sido auxiliados pelos cruzados há mais de 800 anos. Descoberto o imperdoável desvio, Raimundo Silva é chamado à editora, é advertido e comunicado que uma nova contratada seria responsável pelo trabalho dos revisores, a fim de que deslizes como esse, intencionais ou não, não mais ocorram. 

Em um primeiro contato, bastante tenso, Raimundo e Maria Sara trocam farpas sobre a culpa do erro, logo reconhecido pelo revisor. No entanto, ocorre o inesperado. Em sua tediosa vida, Raimundo Silva começa a experimentar sensações nova (ou no mínimo que não sentia há muito tempo): passa a se sentir atraído por Maria Sara. Saramago descreve a aproximação entre esses dois de maneira muito sutil, quase adolescente, provando que o amor por nascer e frutificar em qualquer fase da vida. Para seu alento, Raimundo Silva descobre, por meio de um telefonema, que Maria Sara sentia o mesmo.

É justamente dela, sua superior no trabalho na editora, que surge a proposta de Raimundo Silva, de revisor, tornar-se escritor. Maria Sara lhe propõe escrever uma história em que de fato os cruzados não tenham ajudado os portugueses das antigas eras a tomar a cidade das mãos dos mouros. Raimundo aceita a proposta após alguma resistência. A partir daí, a História "oficial", a história que Raimundo reescrevia  e a vida real (de Raimundo e Maria Sara, que, para nós leitores, é outra história) passam a se misturar, entremeados pelas deliciosas, e, por vezes, bastante complexas, considerações e provocações políticas, filosóficas e religiosas de Saramago.

Um livro altamente metalinguístico, no qual a reflexão sobre o fazer literário se dá em diversos níveis: seja no lugar de Saramago refletindo sobre os procedimentos narrativos de seu romance e do desenrolar da relação entre Raimundo e Maria Sara, seja no lugar de Raimundo refletindo sobre os procedimentos narrativos da história deturpada de Portugal que se comprometera a escrever. Toda a temática do livro já se antecipada no diá
logo com que o romance começa, entre o historiador e Raimundo. É lá que Raimundo enuncia que tudo o que não é vida, é literatura, incluindo a História. Essa provocação nos convida a pensar sobre as versões que conhecemos dos fatos passados e, consequentemente, sobre as nossas convicções atuais. Com uma linguagem bastante sofisticada e uma ironia fina a que algumas mentes menos avisadas não conseguem alcançar, Saramago constrói um cruzamento de personagens, separados por 800 anos de distância, ainda que estejam nas mesmas terras, sob as vistas de um mesmo rio.

SARAMAGO, José. História do cerco de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.