19 de maio de 2024

Almas de margens opostas jamais se encontram verdadeiramente


Hungria, 1940. Henrik é um aristocrata não somente velho, mas envelhecido pelo tempo, pelas guerras e revoluções que presenciou e por uma espera. Ha 41 anos, ele espera poder esclarecer os fatos de um dia de junho de 1899. De origem nobre, sua linhagem e seus antepassados já haviam escrito seu destino: tornou-se um general disciplinado e obediente, próximo do imperador da Áustria-Hungria, de quem seus pais foram inclusive anfitriões.


É na escola de oficiais que Henrik, ainda adolescente, conhece Konrad, também fidalgo, ainda que de família decadente, que se desdobra em esforços além do limite para manter o filho em contato com a nobreza austríaca. Quando seu amigo é apresentado a seu pai, durante uma visita à família, o pai o adverte: “Konrad não é um soldado como nós”. A esse alerta, o pequeno Henrik não presta muita atenção, talvez por não tê-lo entendido completamente. Durante essa mesma visita, Henrik observa sua mãe e seu amigo Konrad embebidos pela música que tocam no piano. A música sempre o entediou muito: jamais compreendeu como algo tão abstrato pudesse comunicar o que quer que fosse.


Os anos passam, os amigos permanecem juntos, em caçadas e nas fúteis atividades da vida aristocrática. Henrik casa-se com Krisztina, mulher que também possui uma alma mais sensível às sutilezas, antípoda do espírito cartesiano e metódico de Henrik. 


Em uma manhã, durante uma caçada, Henrik observa que Konrad aponta-lhe a arma. Espera, sem entender, que o tiro lhe acerte a cabeça. Konrad, porém, recua e, sem nada dizer, retira-se. Henrik retorna à casa e encontra Krisztina surpresa. Surge, então, uma desconfiança. Na mesma noite de 1899, Henrik vai à casa de Konrad e descobre que o amigo fugira. Krisztina chega em seguida e apenas diz: “Era mesmo um covarde”. Daí em diante, o aristocrata tranca-se em uma ala de seu castelo, não se encontra mais nem com Krisztina, nem com Konrad, de quem ele deixa de ter notícias por 41 anos. Passam-se duas guerras mundiais, Krisztina morre. O isolamento de Henrik, entretanto, permanece, à espera de que Konrad em algum momento retorne para esclarecer o fatídico dia. 


Eis que o dia chega e os dois velhos encontram-se no castelo de Henrik. O que deveria ser um diálogo, torna-se um longuíssimo monólogo de Henrik (bem possivelmente um reflexo de sua vaidade) perscrutando temas com a amizade, a honra e as inclinações da alma humana. Konrad não tem chance de falar. Na verdade, foram 41 anos preparando esse discurso, que, por fim, conclui que há dois tipos de espíritos: aqueles sensíveis à música, como de Krisztina, Konrad e da mãe de Henrik; e aqueles que não a compreendem. Foi a música que permitiu que Krisztina e Konrad se aproximassem, se comunicassem e se amassem sem deixar rastros que gerassem qualquer desconfiança de Henrik.


Um livro denso, que exige do leitor atenção para mergulhar nos melindres da análise feita por aquele que se acreditava racional, mas se revelou frágil quando a vida assim exigiu. Mais do que um romance, o livro se aproxima de um tratado filosófico sobre as relações humanas e sobre as complexas motivações do ser humano.


MÁRAI, Sándor. As brasas. Tradução de Rosa Freire d'Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.