Inspirado pelo anúncio da série na Netflix, resolvi reler Cem anos de solidão depois de mais de uma década da primeira leitura. Naquela ocasião, ainda na graduação de Letras, lembro-me de tentar empreender uma leitura sistemática, em conformidade com as teorias que aprendia e que tinham a pretensão de nortear como textos literários, em especial os clássicos, devem ser lidos e interpretados. Confesso que, embora tenha reconhecido a grandiosidade da obra à época, não consegui entrever contundentes críticas e profundos significados além da inquestionável riqueza formal da obra.
Alguns anos depois, retiro o mesmo e já envelhecido livro da prateleira. Livro que já era envelhecido quando da primeira leitura, pois comprado em um sebo. É senso comum dizer que toda obra lida em momentos diferentes da vida se torna outra, e desta vez não foi diferente. A leitura descompromissada, fluida e talvez mais amparada em repertório que somente a vivência real permite ter. Terminei hoje de ler e já assisti a alguns episódios da série.
Toda pessoa que já tenha ouvido falar de Cem anos de solidão sabe que o enredo explora a saga de uma longa linhagem, dos Buendía, nascida com os ancestrais José Arcadio e Úrsula, que decidem, após um duelo, atravessar a cordilheira e fundar uma nova cidade. As razões que levaram a essa decisão podem passar despercebidas por um estudante de Letras ávido por uma leitura estrutural. No entanto, essas razões são, sob minha perspectiva, o primeiro ponto de inflexão da narrativa, o que permite alinhá-la com justeza à realidade latino-americana. Quero me deter nestas razões, porque elas se repetem em todo o restante da trama.José Arcadio Buendía e Úrsula Iguarán pertencem a duas famílias cujos vínculos remontam a tempos imemoriais. O temor de que seus laços sanguíneos levem ao nascimento de aberrações (iguanas ou crianças com rabos de porco) faz com que Úrsula use, nos primeiros meses após o casamento, um cinto de castidade. É com base nos rumores de que o casamento ainda não se consumara que Prudêncio Aguilar, irritado com a derrota em uma rinha de galo, ofende a masculinidade de José Arcadio. A morte de Prudêncio em um duelo e a insistente assombração de seu espectro obrigam o casal a partir. Linhagens entrecruzadas, masculinidade premente de afirmação constante, superstições, duelos pela honra e a presença do sobrenatural prenunciam o cenário de uma América Latina ancestral, mas cujos traços essenciais persistem.
O desenrolar da trama se dá em Macondo, isolada da mundo, a não ser pelas visitas constantes de um grupo de ciganos, liderados por Melquíades. É esse personagem, que se tornaria central, o responsável por apresentar novidades científicas (o ímã, o gelo, o daguerreótipo) que, por sua vez, são assimiladas pelos habitantes do vilarejo sob um véu do misticismo. Nessa impossibilidade de distinguir o físico do metafísico, o natural do mágico, reside a narrativa.
Macondo é um microcosmo da Colômbia, é um metonímia da América colonizada. Sintomático é o momento em que o místico José Arcadio debocha da índia Visitación quando esta lhe comunica a epidemia de insônia que assolara sua aldeia e que parecia estar se instalando em Macondo. O oculto e o transcendental existem e são aceitos, mas quando vem do outro é motivo de zombaria. São os mesmos ultrarreligiosos que se acusam mutuamente de charlatanismo.
Outro aspecto que torna Macondo o reduzido reflexo perfeito da América colonizada é a oposição entre seu surgimento orgânico, laico, espontâneo e as paulatinas imposições institucionais personificadas em Apolinar Moscote, enviado do governo central. A liberdade dos habitantes é inicialmente confrontada pela imposição de um Estado, que chega a obrigá-los a pintar as paredes das casas de azul; depois, é a institucionalização dos rituais religiosos, como o casamento e o batismo; por fim, a construção de escolas regulares. A originária autenticidade de Macondo está, assim, extinta e o já antigo confronto entre a fé religiosa e o racionalismo científico, que remonta às origens barrocas da identidade latino-americana, adquire um elemento novo.
A longa descendência dos Buendía terá figuras importantes, como o Coronel Aureliano Buendía, filho do casal fundador. Uma figura política importante que lutará contra o partido conservador em favor dos menos favorecidos, mas que, em pouco tempo, se tornará a síntese do autoritarismo. Arcadio, seu sobrinho, também instaura sobre Macondo anos de chumbo. Politicamente despótica e com costumes lascivos, a ambiguidade é marca indelével da cidade.
Personagens surgem e desaparecem: Rebeca, com sua misteriosa origem e o saco em que carregava os ossos de seus pais; Amaranta, última filha do casal Buendía; Pilar Ternera, cartomante marginalizada que também se presta a favores sexuais; Fernanda del Carpio, que tenta impor costumes de sua origem aristocrática, tão distantes da realidade de Macondo. Entretanto, é Úrsula que persiste como um alicerce do ideário inicial que animou os fundadores. A decadência, porém, é inevitável; a frouxidão dos costumes (não se trata de um conceito moralista) impõe aos habitantes o reconhecimento de que o destino, manifesto na repetição dos nomes das personagens, é implacável contra aqueles que são incapazes de aprender com os tropeços do passado.
É um livro sobre autoritarismo, sobre um destino inexorável e uma interminável repetição de erros que construiu somente mazelas, que se perpetuam nestas terras. Duas considerações devem ser retiradas ao final desta longa jornada de leitura, uma interna à história e outra da minha experiência de observador-leitor.
A primeira está no final do enredo, quando o último dos Aurelianos consegue, enfim, decifrar as premonições de Melquíades. Na verdade, é no final que ele consegue mesmo descobrir que aqueles escritos eram premonições. Termina lendo justa e exatamente o que acontecia do lado de fora do ambiente mágico do laboratório de alquimia: um ciclone destruía a cidade depois do nascimento da temida criança com rabo de porco, fruto de uma incestuosa relação com sua tia. É, portanto, a história de uma história que já estava contada, faltava-lhe a capacidade de ler. Para nós, latino-americanos, nossa história também já está contada e o final é previsível: enquanto eternizarmos as mesmas relações que nos deram origem, ainda que por vezes lhesdemos pequenas variações de nomes, o fim será a derrocada total. Na estrutura mais íntima, vivemos sob os mesmos sustentáculos dos colonizadores, que impuseram distinções intransponíveis entre pessoas, seja sob o nome de escravidão, seja sob qualquer outro nome contemporâneo. Isso para citar apenas uma de nossas heranças.
A segunda consideração que me ocorre diz respeito àquele estudante de Letras que pretendia assimilar infalíveis ferramentas que lhe permitissem ler narrativas complexas a fim de se apropriar de seus mais íntimos sentidos. A lição que fica é que, quando a narrativa é realmente complexa, como o é Cem anos de solidão, as frias ferramentas têm uma utilidade secundária. São obras que exigem espírito antes de tudo. Na sensibilidade está a mais importante ferramenta, aquela que dá a oportunidade de entender uma personagem, um cenário, uma situação, como parte da sua própria vida, como identidade. Por ter nascido na América Latina estou convicto de que compreendi o mais profundo sentido da solidão segundo
García Márquez.
MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão. Tradução de Eliane Zagury. Rio de Janeiro: Record, 1995.