15 de dezembro de 2024

América Latina revisitada

Inspirado pelo anúncio da série na Netflix, resolvi reler Cem anos de solidão depois de mais de uma década da primeira leitura. Naquela ocasião, ainda na graduação de Letras, lembro-me de tentar empreender uma leitura sistemática, em conformidade com as teorias que aprendia e que tinham a pretensão de nortear como textos literários, em especial os clássicos,  devem ser lidos e interpretados. Confesso que, embora tenha reconhecido a grandiosidade da obra à época, não consegui entrever contundentes críticas e profundos significados além da inquestionável riqueza formal da obra.

Alguns anos depois, retiro o mesmo e já envelhecido livro da prateleira. Livro que já era envelhecido quando da primeira leitura, pois comprado em um sebo. É senso comum dizer que toda obra lida em momentos diferentes da vida se torna outra, e desta vez não foi diferente. A leitura descompromissada, fluida e talvez mais amparada em repertório que somente a vivência real permite ter. Terminei hoje de ler e já assisti a alguns episódios da série.

Toda pessoa que já tenha ouvido falar de Cem anos de solidão sabe que o enredo explora a saga de uma longa linhagem, dos Buendía, nascida com os ancestrais José Arcadio e Úrsula, que decidem, após um duelo, atravessar a cordilheira e fundar uma nova cidade. As razões que levaram a essa decisão podem passar despercebidas por um estudante de Letras ávido por uma leitura estrutural. No entanto, essas razões são, sob minha perspectiva, o primeiro ponto de inflexão da narrativa, o que permite alinhá-la com justeza à realidade latino-americana. Quero me deter nestas razões, porque elas se repetem em todo o restante da trama.

José Arcadio Buendía e Úrsula Iguarán pertencem a duas famílias cujos vínculos remontam a tempos imemoriais. O temor de que seus laços sanguíneos levem ao nascimento de aberrações (iguanas ou crianças com rabos de porco) faz com que Úrsula use, nos primeiros meses após o casamento, um cinto de castidade. É com base nos rumores de que o casamento ainda não se consumara que Prudêncio Aguilar, irritado com a derrota em uma rinha de galo, ofende a masculinidade de José Arcadio. A morte de Prudêncio em um duelo e a insistente assombração de seu espectro obrigam o casal a partir. Linhagens entrecruzadas, masculinidade premente de afirmação constante, superstições, duelos pela honra e a presença do sobrenatural prenunciam o cenário de uma América Latina ancestral, mas cujos traços essenciais persistem.

O desenrolar da trama se dá em Macondo, isolada da mundo, a não ser pelas visitas constantes de um grupo de ciganos, liderados por Melquíades. É esse personagem, que se tornaria central, o responsável por apresentar novidades científicas (o ímã, o gelo, o daguerreótipo) que, por sua vez, são assimiladas pelos habitantes do vilarejo sob um véu do misticismo. Nessa impossibilidade de distinguir o físico do metafísico, o natural do mágico, reside a narrativa. 

Macondo é um microcosmo da Colômbia, é um metonímia da América colonizada. Sintomático é o momento em que o místico José Arcadio debocha da índia Visitación quando esta lhe comunica a epidemia de insônia que assolara sua aldeia e que parecia estar se instalando em Macondo. O oculto e o transcendental existem e são aceitos, mas quando vem do outro é motivo de zombaria. São os mesmos ultrarreligiosos que se acusam mutuamente de charlatanismo. 

Outro aspecto que torna Macondo o reduzido reflexo perfeito da América colonizada é a oposição entre seu surgimento orgânico, laico, espontâneo e as paulatinas imposições institucionais personificadas em Apolinar Moscote, enviado do governo central. A liberdade dos habitantes é inicialmente confrontada pela imposição de um Estado, que chega a obrigá-los a pintar as paredes das casas de azul; depois, é a institucionalização dos rituais religiosos, como o casamento e o batismo; por fim, a construção de escolas regulares. A originária autenticidade de Macondo está, assim, extinta e o já antigo confronto entre a fé religiosa e o racionalismo científico, que remonta às origens barrocas da identidade latino-americana, adquire um elemento novo.

A longa descendência dos Buendía terá figuras importantes, como o Coronel Aureliano Buendía, filho do casal fundador. Uma figura política importante que lutará contra o partido conservador em favor dos menos favorecidos, mas que, em pouco tempo, se tornará a síntese do autoritarismo. Arcadio, seu sobrinho, também instaura sobre Macondo anos de chumbo. Politicamente despótica e com costumes lascivos, a ambiguidade é marca indelével da cidade.

Personagens surgem e desaparecem: Rebeca, com sua misteriosa origem e o saco em que carregava os ossos de seus pais; Amaranta, última filha do casal Buendía; Pilar Ternera, cartomante marginalizada que também se presta a favores sexuais; Fernanda del Carpio, que tenta impor costumes de sua origem aristocrática, tão distantes da realidade de Macondo. Entretanto, é Úrsula que persiste como um alicerce do ideário inicial que animou os fundadores. A decadência, porém, é inevitável; a frouxidão dos costumes (não se trata de um conceito moralista) impõe aos habitantes o reconhecimento de que o destino, manifesto na repetição dos nomes das personagens, é implacável contra aqueles que são incapazes de aprender com os tropeços do passado. 

É um livro sobre autoritarismo, sobre um destino inexorável e uma interminável repetição de erros que construiu somente mazelas, que se perpetuam nestas terras. Duas considerações devem ser retiradas ao final desta longa jornada de leitura, uma interna à história e outra da minha experiência de observador-leitor.

A primeira está no final do enredo, quando o último dos Aurelianos consegue, enfim, decifrar as premonições de Melquíades. Na verdade, é no final que ele consegue mesmo descobrir que aqueles escritos eram premonições. Termina lendo justa e exatamente o que acontecia do lado de fora do ambiente mágico do laboratório de alquimia: um ciclone destruía a cidade depois do nascimento da temida criança com rabo de porco, fruto de uma incestuosa relação com sua tia. É, portanto, a história de uma história que já estava contada, faltava-lhe a capacidade de ler. Para nós, latino-americanos, nossa história também já está contada e o final é previsível: enquanto eternizarmos as mesmas relações que nos deram origem, ainda que por vezes lhes
demos pequenas variações de nomes, o fim será a derrocada total. Na estrutura mais íntima, vivemos sob os mesmos sustentáculos dos colonizadores, que impuseram distinções intransponíveis entre pessoas, seja sob o nome de escravidão, seja sob qualquer outro nome contemporâneo. Isso para citar apenas uma de nossas heranças.

A segunda consideração que me ocorre diz respeito àquele estudante de Letras que pretendia assimilar infalíveis ferramentas que lhe permitissem ler narrativas complexas a fim de se apropriar de seus mais íntimos sentidos. A lição que fica é que, quando a narrativa é realmente complexa, como o é Cem anos de solidão, as frias ferramentas têm uma utilidade secundária. São obras que exigem espírito antes de tudo. Na sensibilidade está a mais importante ferramenta, aquela que dá a oportunidade de entender uma personagem, um cenário, uma situação, como parte da sua própria vida, como identidade. Por ter nascido na América Latina estou convicto de que compreendi o mais profundo sentido da solidão segundo
García Márquez. 

MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão. Tradução de Eliane Zagury. Rio de Janeiro: Record, 1995.

19 de maio de 2024

Almas de margens opostas jamais se encontram verdadeiramente


Hungria, 1940. Henrik é um aristocrata não somente velho, mas envelhecido pelo tempo, pelas guerras e revoluções que presenciou e por uma espera. Ha 41 anos, ele espera poder esclarecer os fatos de um dia de junho de 1899. De origem nobre, sua linhagem e seus antepassados já haviam escrito seu destino: tornou-se um general disciplinado e obediente, próximo do imperador da Áustria-Hungria, de quem seus pais foram inclusive anfitriões.


É na escola de oficiais que Henrik, ainda adolescente, conhece Konrad, também fidalgo, ainda que de família decadente, que se desdobra em esforços além do limite para manter o filho em contato com a nobreza austríaca. Quando seu amigo é apresentado a seu pai, durante uma visita à família, o pai o adverte: “Konrad não é um soldado como nós”. A esse alerta, o pequeno Henrik não presta muita atenção, talvez por não tê-lo entendido completamente. Durante essa mesma visita, Henrik observa sua mãe e seu amigo Konrad embebidos pela música que tocam no piano. A música sempre o entediou muito: jamais compreendeu como algo tão abstrato pudesse comunicar o que quer que fosse.


Os anos passam, os amigos permanecem juntos, em caçadas e nas fúteis atividades da vida aristocrática. Henrik casa-se com Krisztina, mulher que também possui uma alma mais sensível às sutilezas, antípoda do espírito cartesiano e metódico de Henrik. 


Em uma manhã, durante uma caçada, Henrik observa que Konrad aponta-lhe a arma. Espera, sem entender, que o tiro lhe acerte a cabeça. Konrad, porém, recua e, sem nada dizer, retira-se. Henrik retorna à casa e encontra Krisztina surpresa. Surge, então, uma desconfiança. Na mesma noite de 1899, Henrik vai à casa de Konrad e descobre que o amigo fugira. Krisztina chega em seguida e apenas diz: “Era mesmo um covarde”. Daí em diante, o aristocrata tranca-se em uma ala de seu castelo, não se encontra mais nem com Krisztina, nem com Konrad, de quem ele deixa de ter notícias por 41 anos. Passam-se duas guerras mundiais, Krisztina morre. O isolamento de Henrik, entretanto, permanece, à espera de que Konrad em algum momento retorne para esclarecer o fatídico dia. 


Eis que o dia chega e os dois velhos encontram-se no castelo de Henrik. O que deveria ser um diálogo, torna-se um longuíssimo monólogo de Henrik (bem possivelmente um reflexo de sua vaidade) perscrutando temas com a amizade, a honra e as inclinações da alma humana. Konrad não tem chance de falar. Na verdade, foram 41 anos preparando esse discurso, que, por fim, conclui que há dois tipos de espíritos: aqueles sensíveis à música, como de Krisztina, Konrad e da mãe de Henrik; e aqueles que não a compreendem. Foi a música que permitiu que Krisztina e Konrad se aproximassem, se comunicassem e se amassem sem deixar rastros que gerassem qualquer desconfiança de Henrik.


Um livro denso, que exige do leitor atenção para mergulhar nos melindres da análise feita por aquele que se acreditava racional, mas se revelou frágil quando a vida assim exigiu. Mais do que um romance, o livro se aproxima de um tratado filosófico sobre as relações humanas e sobre as complexas motivações do ser humano.


MÁRAI, Sándor. As brasas. Tradução de Rosa Freire d'Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.